Centro de Origem e Domesticação da Cannabis Sativa

“Centro de Origem e Domesticação da Cannabis Sativa”por: Augusto Grower, Fernando Finger Santiago e Bruno Matos

O “Centro de Origem” de uma espécie vegetal corresponde à região onde a linhagem ancestral (selvagem/silvestre) se distribuiu em um estado nativo, através de cruzamentos realizados na própria natureza. Nesse sentido, entender o centro de origem da Cannabis sativa é compreender a ancestralidade e riqueza genética da planta, concentrada na região principiante. 

Segundo estudos recentes, a C. sativa é originária do Tibete, mais especificamente no nordeste do planalto tibetano, às margens do lago Qinghai, o maior lago da China (Figura 1). A Cannabis sativa permaneceu por aproximadamente 28 milhões de anos nos estepes (campos de gramíneas) dessas proximidades da Ásia Central. 

Domesticação da Cannabis Sativa
Figura 1. Lago Qinghai, o maior da China.

A origem da Cannabis sativa foi determinada com a análise arqueobotânica de fósseis de pólen (estrutura de reprodução de flores masculinas), aquênios indeiscentes (sementes envoltas pelos frutos) e pedaços de caules.

Entretanto, as descobertas foram marcadas por desafios, pois o gênero Humulus (conhecido como lúpulo), tem um formato de pólen semelhante ao da Cannabis nos fósseis. Para a diferenciação dos pólens, foram identificados os resquícios de plantas que cresceram juntamente a Cannabis, no caso as coabitantes estepes/gramíneas (Poaceae) e também a Artemísia (Artemisia vulgaris). Quanto ao lúpulo, a vegetação coabitante foram árvores (Figuras 2 e 3).

Domesticação da Cannabis Sativa
Figura 2. O lúpulo (Humulus lupulus) e cannabis (Cannabis sativa) pertencem à mesma família: Cannabaceae. Eles possuem uma ancestralidade em comum até certo ponto taxonômico, onde em gêneros já se diferenciam.
Domesticação da Cannabis Sativa
Figura 3. Centros de coleta de fósseis de pólen de cannabis e lúpulo. O pólen mais antigo de C. sativa foi localizado em Ningxia (China), na fronteira entre o planalto tibetano e o planalto de Loess (estrela no mapa).

O “Centro de Domesticação” representa a região que a espécie vegetal foi domesticada, ou seja, onde ela foi adaptada para o uso humano, através da seleção de genótipos com determinadas características.

Portanto, estudar o centro de domesticação da Cannabis sativa é compreender que houve uma evolução “provocada” pelo ser humano, para melhorar as características “desejáveis” da planta, como exemplos: tamanho e densidade de flores; ciclos mais precoces; altura de planta; propriedades organolépticas (aroma, sabor, textura, visual); perfil fitoquímico (terpenos e canabinóides), entre outros.

Para os estudos do centro de domesticação da Cannabis sativa, os marcadores moleculares cpDNA (DNA de cloroplastos – organela responsável por produzir o pigmento fotossintetizante clorofila) e a filogeografia são extremamente funcionais, permitindo a  investigação da diversidade genética, estrutura populacional, origem da domesticação e contexto histórico da planta.

O cpDNA é uma região genômica com característica haplóide (apenas um cromossomo, sem cópias) e que é herdada pelo material genético das plantas fêmeas de Cannabis sativa nos cruzamentos. No estudo realizado por Zhang et al. 2018, foram estudadas sequências genômicas dos cloroplastos (cpDNA) de 645 plantas, provenientes de 52 acessos de Cannabis sativa, incluindo populações selvagens, landraces (regionais/crioulas) e linhagens amplamente cultivadas (strains) de diferentes graus de latitude (baixa, média e alta) (Tabela 1). Para a identificação da diversidade genética, foram analisadas cinco regiões sequenciais do cpDNA: rps16; psaI-accD; rps11-rps8; rpl32-trnL; ndhF-rpl32.

Tabela 1. Acessos de C. sativa utilizados no estudo para a determinação dos centros de domesticação. As informações foram baseadas nas cinco regiões do cpDNA. Adaptado e traduzido: Vitor A.C., 2022. 

  • A latitude (oN) varia de 0 a 90o para Norte: 0 – 30 (baixa latitude); 30 – 60 (média latitude); 60 – 90 (alta latitude);
  • Geralmente, as condições ótimas para adaptação da Cannabis sativa são latitudes baixas, com pouca variação de fotoperíodo durante as estações do ano, como as regiões equatoriais, onde a latitude se aproxima de 0o, sendo o ideal para plantas de dia curto (PDC), onde o fotoperíodo se mantém 12/12 quase todo o ano. No entanto, os acessos estudados eram provenientes de regiões com latitude mais próximas de médias e altas, evidenciando a adaptação regional da espécie; 
  • Algumas linhagens ancestrais estavam constitutivamente adaptadas ao continente asiático, provavelmente com determinada predominância da sub-espécie Ruderalis. Especificamente, na região da Eurásia (Rússia Central), com um clima mais temperado e com latitude mais elevada, a característica de floração automática poderia estar evidente, não respeitando tanto o regime de uma “planta de dia curto” (PDC). A provável adaptação a diversas regiões e variações de latitude é devido à alta plasticidade fenotípica da cultura, respondendo com excelência às mudanças ambientais e permitindo o sucesso reprodutivo em localizações geográficas originalmente não-ideais;
  • Os Haplótipos são sequências cromossômicas que apresentam proximidade entre si, permitindo a classificação das plantas em grupos, através de sequências semelhantes; 
  • Os Haplótipos variaram de 1 a 25, em três grandes grupos: H, M e L. 

Agrupamento da Cannabis Sativa

O agrupamento das cinco regiões dos cloroplastos das 645 plantas gerou 25 haplótipos (H1 – H25), os quais foram identificados com base na variação genética e divididos em haplogrupos: Haplogrupo H, Haplogrupo M e Haplogrupo L. A divisão correspondeu a grupos genéticos diferenciados, distribuídos espacialmente em 3 regiões principais, com determinadas variações latitudinais: Halogrupo H (regiões ao norte – 40◦); Halogrupo M (regiões centrais – 30 a 40◦); Halogrupo H (regiões ao sul – 30 a 40◦) (Figura 4). 

Domesticação da Cannabis Sativa
Figura 4. Os Três halogrupos: Halogrupo L (acessos de plantas com menor latitude – cor verde), foram distribuídos pela área ao sul de 30◦ N; Halogrupo M (acessos de plantas com média latitude – cor vermelha), foram distribuídos pela área central, variando de 27◦ a 43◦ N;  Halogrupo H (acessos de plantas com alta latitude – cor azul), foram distribuídas pelo norte (40◦ N).

Com base nos dados agrupados, é evidente que o centro de domesticação da C. sativa foi a Eurásia. Entretanto, provavelmente não foi apenas uma sub-região, e sim uma preposição de ao menos 3, podendo chegar a 10 sítios de domesticação, concentrados nessa divisão continental (Figura 5). 

Domesticação da Cannabis Sativa
Figura 5. Centros de domesticação da Cannabis sativa na Eurásia, depois havendo disseminação da planta pelos outros continentes, de acordo com a cronologia.

Certamente, a contribuição da descoberta dos centros de “origem” e “domesticação” da C. sativa não representa apenas valor histórico e antropológico, mas também uma riqueza agrícola, que pode ser utilizada para a criação e melhoria de cultivares, com diferentes destinos de uso: industrial, farmacêutico; recreativo/adulto, entre outros. Nesse sentido, os genótipos selvagens, landraces e strains dessa macrorregião certamente representam uma rica fonte de germoplasma para futuros programas de melhoramento da planta. 

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